as raízes autoritárias do mito do “gigante adormecido” e o risco de ditadura nas manifestações atuais

 
 
Olá a tod@s
 
 
Gostaria de fazer algumas observações a respeito dos últimos acontecimentos. Até um jumento político às vezes precisa sair da toca e contribuir ao debate coletivo.
 
Eu gostaria de falar sobre um risco.
 
Está mais ou menos claro que há uma agremiação de interesses e atitudes ideológicas (legítimas ou não) relativamente heterogêneas, embora dentro do escopo, já bastante amplo, dos interesses e posicionamentos político-ideológicos da classe média, incluindo aí suas frações de esquerda, como o MPL, universitários, militantes e intelectuais.
 
Há uma frustração sistemática com a estrutura política estabelecida, que vai desde insatisfações com políticas específicas (as tarifas de ônibus, PEC 37, a eleição de Renan Calheiros para a presidência do Senado, e por aí vai), a uma insatisfação mais generalizada, envolvendo todas as instituições políticas.
 
No estado atual, parece que as reivindicações e protestos direcionados àquelas políticas específicas desencadeou, deu corpo, a um conjunto extenso de frustrações e insatisfações, sistematicamente acumuladas, nas classes médias e altas.
 
Essas frustrações vão desde insatisfações com o (péssimo) desempenho dos governos eleitos, com a democracia e com as instituições do Estado, a uma insatisfação com o desempenho do país, da sociedade brasileira em geral. Parece que as insatisfações políticas conjugam-se com insatisfações com a própria condição de “ser brasileiro”. Fala-se no “caráter” do “brasileiro”, envolvendo lugares-comuns (jeitinho, malandragem, corrupção, incapacidade de organização, falta de “seriedade” etc.).
 
Trata-se, na verdade, de uma frustração com a “identidade nacional”. Eu considero esse ponto fundamental: há uma espécie de mitologia subjacente que fez com que as insatisfações políticas tomassem essa forma difusa e generalizada.
 
E essa conjunção pode favorecer o autoritarismo.
 
Em nível individual, psicológico, o grau das insatisfações depende de uma distância entre expectativas e realidade. Basicamente, quanto maior a distância entre o que se deseja e o que se é, maior a frustração.
 
Eventualmente, a frustração atinge níveis mais profundos, e nesse ponto a identidade é colocada em dúvida, minando a autoestima. Desenvolve-se uma série de ressentimentos. Neste ponto, torna-se necessário culpar algum agente externo. Então, basta que surja uma circunstância favorável, um estopim, para que o ressentimento se transforme em agressividade e, eventualmente, violência.
 
Escutei, já inúmeras vezes, por anos a fio – mas sobretudo agora – que o Brasil precisa passar por uma guerra; isto é, uma guerra interna, porque “não há país grande sem guerra”, uma guerra grandiosa – e aqui as pessoas referem-se às grandes potências.
 
Essa insatisfação, esse recalque, está associado à ideia do “gigante adormecido”. Isso não é só uma ideia, é uma expectativa, individual e coletiva. Há uma expectativa, entre as classes médias, de um Brasil-França, um Brasil-Alemanha, e, sobretudo, um Brasil-Estados Unidos. As classes médias e altas são encantadas com potências estrangeiras desde, pelo menos, o período imperial.
 
Mas, em primeiro lugar, o Brasil de hoje não são os Estados Unidos ou a França do século XVIII ou a Alemanha no século XIX.
 
(Do XX, talvez? O nazismo, se subtrairmos o holocausto, incita aquela fascinação irresistível: a sua grandiosidade, o seu PODER, outrora personificado por uma potência comunista, ou capitalista, ou em uma Roma romantizada, cada qual justificado por grandes “virtudes”.)
 
Diz-se, orgulhosamente, nos quatro cantos e aqui no Facebook, em palavras ingênuas, quase inocentes: “O gigante acordou”. Hashtags, “vamosbrasil!”, “acordabrasil!”. Euforia nacionalista: ORGULHO DE SER BRASILEIRO! Hino nacional. “Sou brasileiro com muito orgulho, com amor”.
 
Há um clamor por –unidade-. A fusão de todos os indivíduos em uma espécie de entidade maior, “um só corpo” – como diziam os fascistas.
 
Do ódio comum somos conduzidos ao mito do “destino inescrutável da Nação”. Isto é, o “gigante adormecido”. Somos – ou deveríamos ser – naturalmente superiores aos outros. Assim como -eles-. Esse destino é então inscrito na “essência da Nação”. Estaria na nossa “essência”, sermos “gigantes”.
 
Da “essência da Nação” chegamos à mitologia da unidade do “Povo”. Do folk. O “Povo” representa a todos.
 
No passo seguinte, a mitologia se sustenta nos valores tradicionais, nos “valores fundamentais da Nação”. A Nação adquire caráter sagrado. O discurso ideológico, político, assimila-se a um discurso religioso e a valores tradicionais.
 
Agora já temos um fenômeno social total. E muito, muito ódio.
 
Se somos superiores, gigantes, algo obstrui nossa caminhada ao paraíso. Chega o momento em que é preciso identificar as causas do infortúnio divino.
 
O inimigo do Povo são os degenerados. Aqui, no decorrer da história, cada nação escolheu seu inimigo particular. Entre eles as instituições políticas. A democracia.
 
Os líderes dos movimentos autoritários identificam e interpretam os fenômenos culturais e de massa e os cooptam, em função das estruturas políticas e da cena política do momento. Instituições políticas em crise. Inclusive, e particularmente, as democráticas.
 
O Estado então passa a ser visto como uma das forças que corrompem o “Espírito da Nação” e que a impedem de realizar o seu “Destino”.
 
O Estado torna-se um foco de degeneração. Precisa ser destruído.
 
O “Povo”, contudo, precisa tomar forma, precisa de um representante. Esse representante precisa incorporar o princípio mitológico da “Unidade”, inscrita em toda essa imensa ficção coletiva. O representante, portanto, não pode demonstrar o menor sintoma de divisão ou fracionamento. E, aqui, o movimento torna-se incompatível com a democracia.
 
O Representante precisar ser Um. Um, como o Povo. Assim, em caixa alta: O Líder. Um líder forte, que expresse o destino grandioso da Nação. Forte como esse Destino. Forte como merecemos, grandioso como nossas expectativas.
 
É a ideia fundamental do discurso autoritário. Esse estado psicológico e cultural traduz os princípios do discurso autoritário, e a afinidade entre discurso e expectativas pavimenta o caminho para a legitimação política e social do autoritarismo, isto é, a sua institucionalização.
 
Grandes ditaduras partem de reivindicações legítimas. A violência se nutre de grandes “virtudes”.
 
Eu vejo sangue por trás de tantos enfeites.
 
Que o movimento atual não se traduza em mais um loucura coletiva.